Se você fosse um deus e sua audição divina chegasse aos confins do Krosmoz, você com certeza ouviria um gatinho astral ronronando de impaciência, deitado em seu enorme cesto de vime, enroscando-se sobre uma almofada real feita de penas quiméricas. Mas você não é um deus...
No meio do nada surge uma forma oval, onde brilham constelações de estrelas envoltas de espirais com reflexos azulados e ametista. Lá, o ovo da criação evolui, o casulo absoluto que chamamos de Krosmoz. É no seu interior, em uma dança langorosa e eterna, que a energia criadora e a energia destruidora se misturam para fazer o Mundo dos Doze girar... Mas isso não é tudo!
Foi nesse mundo salutar, gigantesco, mas com uma densidade populacional quase nula, que os Doze Deuses decidiram morar. Mundo achado não é roubado! É verdade que a vista é linda e sem obstruções, mas não acontece muita coisa. Por isso, eles passam o tempo como podem. Assim, encontramos Xelor, o deus do tempo, que aceitou jogar cartas com Ecaflip, a divindade do jogo e do azar.
"Ei, Xeló... Você poderia largar esse seu Relógio Divino por dois minutos? É sua vez de jogar...
- O QUE VOCÊ QUER DIZER COM DOIS MINUTOS? SEJA MAIS PRECISO!, diz com uma voz tenebrosa por baixo do elmo de ferro.
- Dois minutos como um minuto duas vezes, assim como você definiu inúmeros minutos atrás. Horas atrás. Anos atrás... Para que os mortais se organizassem um pouco antes da morte, ironiza o felino. E para que as outras divindades, como eu, pudessem pelo menos contar alguma coisa neste espaço infinito...
- É O RELÓGIO DIVINO QUE DEFINE AS COISAS. TUDO QUE EU FAÇO É GARANTIR QUE ELE CONTINUE SEU TRABALHO.
- É, sei... Isso parece... uma atividade que toma muito tempo.
- É PRECISO SER VIGILANTE O TEMPO TODO. É UMA HONRA SER O GUARDIÃO DO RELÓGIO DIVINO.
- Você nunca pensou em relaxar um pouco? Casar? Ter filhos? Ou, sei lá... Que tal viajar com Sadi e Panda? Se você quiser relaxar de verdade e esquecer a rotina, olha, aqueles dois...
- EU NÃO ENTENDO METADE DAS COISAS QUE VOCÊ ENUNCIA.
- Estou dizendo que você está estressado, Xeló! É visível! Você devia respirar um pouco. Ficar de bobeira. Descansar. Dormir um sono profundo e sereno..."
Essa última frase carregava uma estranha entonação que Xelor não pegou, uma entonação que escondia alguma intenção por trás. Xelor apontou uma carta com o dedo indicador, sem tirar o olho das engrenagens. O retângulo luminoso que planava no espaço avançou lentamente em direção ao centro do jogo. Antes que a carta terminasse sua viagem, Ecaflip moveu dois dedos discretamente: se Xelor estivesse prestando atenção, perceberia que a carta de sua escolha foi trocada por outra do baralho.
Quando o efeito da carta foi ativado, duas silhuetas de combatentes surgiram entre as duas divindades e começaram a lutar: o que portava as cores de Ecaflip desferiu um golpe fortíssimo no que carregava as cores de Xelor, que sucumbiu imediatamente. Enquanto o vencedor começava uma dancinha de comemoração, o Senhor do Tempo, ainda sem desviar o olhar das engrenagens, também moveu dois dedos. Em uma fração de segundo, os dois jogadores voltaram ao começo da partida! Ecaflip abaixou a cabeça, mantendo o sorriso:
"Achei que não perceberia dessa vez...
- VOCÊ É MALANDRO, FELINO. MAS EU PENSO E VOCÊ SEGUE.
- Talvez... Mas eu sempre ganho. Até quando perco.
- VAI SER DIFÍCIL DESEMPATAR."
As cartas ao centro são misturadas e redistribuídas: seis ficam suspensas diante de Ecaflip e outras seis diante de Xelor.
"Eu começo, anunciou o deus felino enquanto lançava a primeira carta. Dizem que você não anda dormindo bem ultimamente...
- É VERDADE, admitiu o Guardião do Relógio Divino sem qualquer dissimulação. QUANDO ESTOU ACORDADO, EU VIGIO O MENOR TIC DOS PONTEIROS, ACOMPANHO O MENOR TAC DO TEMPO. QUANDO ESTOU ADORMECIDO, EU CRIO MUNDOS. LUGARES. LOCAIS QUE NÃO EXISTEM MAIS QUANDO ABRO AS PÁLPEBRAS. EU DURMO APENAS DOIS SEGUNDOS. MAS PARA OS AVENTUREIROS DO MUNDO DOS DOZE QUE PARTICIPAM DOS MEUS SONHOS ESTRANHOS, PODE PARECER MUITO MAIS."
Pela primeira vez em muito tempo (quem sabe há quanto tempo está durando essa partida divina?), Xelor voltou-se para Ecaflip e disse com sua voz metálica:
"MAS VOCÊ JÁ SABE DISSO, 'ECA', NÃO É MESMO?"
Com seus óculos redondos, o deus afortunado sorri mostrando os dentes.
"Você me conhece, ó, grande Xelor! Eu fico entediado com facilidade! Além disso, quando fiquei sabendo do seu... pequeno aborrecimento, eu pensei que poderia vir ajudar você no seu trabalho, tirando esse peso inútil dos seus ombros, que já carregam tantas responsabilidades...
- NÃO EXAGERE!, disparou a voz de dentro do capacete de ferro. EU NUNCA DISSE QUE ERA UM ABORRECIMENTO. UMA RESPONSABILIDADE A MAIS OU A MENOS NÃO FAZ A MENOR DIFERENÇA PARA XELOR. VOCÊ NÃO FAZ IDEIA DOS MEUS DEVERES.
- Mas já vi o suficiente para saber que você deveria pegar mais leve!, retoma Ecaflip. Tá, esquece a viagem com Sadida e Pandawa... Não é mesmo a sua praia... Você não aguentaria dormir mais do que o normal e... acordar em lugares desconhecidos... Mas se dê ao menos este presente: deixe seus sonhos tangíveis comigo... deixe TEMPORIS comigo!"
Xelor ficou parado. Sem olhar as janelas. Nem um único gesto. Parecia que até mesmo o Relógio Divino não fazia mais barulho. É difícil ver o que está estampado no rosto... quando não há rosto! Ecaflip deu sua última cartada:
"... Faça isso, e eu deixo você ganhar a partida!"
O tempo continuou suspenso. Depois, as mãos de Xelor retomaram o que estavam fazendo, abrindo e fechando janelas, mexendo em mecanismos que precisam ser manipulados com precisão. Sem dizer nada, o Senhor do Tempo ficou olhando. Ecaflip perdeu a partida.
Mas também ganhou.
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