segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Bonta vs. Brakmar: os motivos da fúria

Posted by Ismael Rocha on 17:18:00 in | No comments

 

Como o fogo que não paramos de abanar, o conflito entre a cidade branca e a cidade sombria resiste aos anos e consome, lentamente, todos aqueles que se aproximam dele. Ele faz parte do dia a dia dos dozeanos de tal maneira que ninguém mais questiona como tudo isso começou. Bastou um novo e inesperado sopro de raiva para reavivar lembranças que deveriam ser esquecidas... 

Ôm'héga acorda de repente, a testa molhada de suor. Ela havia adormecido há poucos minutos quando um rugido seguido do grito penetrante de um Corvoc a tiraram de seu torpor.

Atrás da janela do quarto, um Miaw de pelagem escura lambe a pata direita, uma pena presa em suas garras. O animal se espreguiça todo, depois salta em direção à saída de uma chaminé. Ele erra por pouco e acaba acertando algumas telhas que caem no chão fazendo o maior estrondo.

"Catita! Chega de baderna!", dispara uma velha Enutrof, furiosa.

Quando Ôm'héga finalmente tinha conseguido pregar os olhos por mais de dez segundos... Que azar...

A pequena Xelor se senta na beira da cama e olha lá fora. A cidade parece tão calma quando ela dorme. Mas tudo não passa de uma ilusão. Ela sabe disso... O conflito nunca descansa. Nos últimos dias, o terror começou a tomar as ruas. Ele é inaudível, mas ensurdecedor. Sua presença impede que Ôm'héga pegue no sono, mas, verdade seja dita, ela sempre teve que dormir com um olho aberto. Desde quando era apenas um bebê.

Ôm'héga pega o copo do dia anterior e toma um generoso gole de água.  

"Pfrutt!"

Ela cospe o líquido no mesmo instante, e uma pequena Arakne lança um olhar de reprovação.

"Qual é?! Não me olhe assim. Quem mandou você vir nadar no meu copo..."

O animal se sacode e solta um pequeno "hum!" presunçoso antes de virar as patas e ir embora, irritado.

Ele sempre esteve lá, até onde ela consegue se lembrar. Toda vez que ia para cama, ela sentia sua presença. Como se ele puxasse os cobertores. Como se ele acendesse uma luz ofuscante ou batesse a porta com força. Por muito tempo, Ôm'héga acreditou que isso era de família. A mãe e a avó também não dormiam com facilidade. Elas mesmas diziam que estava nos genes delas.

"Eu acho que é outra coisa. Acho que é algo mais profundo."

Ôm'héga se levanta em direção à imponente biblioteca que ocupa metade do recinto.  

"Agora eu tenho certeza. Tem algo que não me deixa dormir. Tem algo que não deixa os bontarianos dormirem."

Ela pega um livro tão robusto quanto desgastado. A obra perdeu o seu frescor. A lombada está tão gasta que algumas páginas só não se soltam porque ainda há um pouquinho de cola. Ôm'héga desliza a mão pela capa com delicadeza. E sente as asperezas traçadas pelo desenho que ela arvora: o brasão de Bonta.



"Lembro-me da minha cidade.... Tão linda. Tão orgulhosa..."

Ôm'héga volta para a cama e coloca o livro sobre as pernas. Ele é enorme. Como seria qualquer livro com um passado tão pesado. Ela pula o prefácio que já conhece de cor e salteado e vai direto para o capítulo preferido dela. 

3 DE AGTOR DE 25

A pequena Xelor esboça um sorriso. Foi ali que tudo começou. Por iniciativa de JivaPuchecot e Menalt, protetores respectivos dos meses de javian, agtor e martalo, uma cidade luminosa, que prometia trazer paz e harmonia, estava sendo levantada.

Ôm'héga ainda não era nascida. Mesmo assim, e, agora mais do que nunca, ela sente uma saudade profunda daquela época... As longas noites escutando a avó contar a história de seus ancestrais com certeza têm algo a ver com isso.

Ôm'héga fecha os olhos e deixa as lembranças chegarem até ela...

"O que foi, minha Cacamundonguinha? Não consegue dormir?"

— Não estou com sono, vovó...

— Hum... Entendi... Você quer ouvir a história?", pergunta a senhora com um sorriso malicioso.

Com os cabelos despenteados e os olhos cansados, a garotinha emerge dos cobertores como um pequeno animal.

"Claro, vovó! Por favor! Conte mais uma vez!"

Três tapinhas nos joelhos, e Ôm'héga ia se aninhar na avó na mesma hora. Ela tinha cheiro de sabão e canela. Um cheiro que ela nunca esqueceu, mesmo após quatro anos de sua desencarnação...

Por mais que a Xelor conhecesse a história da criação de Bonta, a Branca, ela nunca perdia a oportunidade de escutá-la mais uma vez. Com uma voz doce e rouca, sua avó fazia com que ela (re)vivesse cada uma das etapas da construção da cidade. A ameaça crescente do culto de Rushu... A decisão de enfrentá-lo a qualquer custo. Os encorajamentos de Jiva, que tinha uma voz tão forte que até os deuses ouviam:

"Pedra por pedra, não é apenas uma simples cidade que vocês estão construindo. É o seu futuro e o dos seus filhos! Uma parede entre vocês e o inimigo! Dozeanos e dozeanasBonta, a Branca, é o berço de um futuro brilhante. E vocês são os pioneiros dela!"

clamor da multidão e as trombetas dos arautos quando a última pedra foi colocada. O banquete e seu buquê de odores tentadores. A interminável vigília festiva que durou a madrugada toda ao som das melodias dos trovadores.

Os gritos de alegria das crianças...

É como se ela tivesse presenciado, toda vez.

Pouco menos de um ano depois, isso começou... Quando precisava falar a respeito, a avó desconversava.

"Oooh... Minha memória é falha, minha querida... Eu não sou mais jovem, sabe... Fora que já está na hora de dormir. Sua mãe vai me falar poucas e boas se ela descobrir que você ficou acordada até essa hora!"

Depois, ela abriu os lençóis sobre Ôm'héga, cobrindo-a com todo o seu amor antes de dar um último beijinho na testa dela. A garotinha esperou a avó fechar a porta para ir cautelosamente até a biblioteca com passos aveludados. E pegou a obra freneticamente, como se ela fosse um objeto proibido.

12 DE SEPTANGE DE 26: AURORA PÚRPURA

Uma gravura que representa "A" batalha se estendia por duas páginas inteiras. O exército bontariano, nobre, heroico, liderado por um Menalt cheio de confiança partia para cima do inimigo. Diante dele, uma horda de brakmarianos furiosos partia para o ataque.

Sobre o papel amarelado pelo tempo, os exércitos pareciam ganhar vida para melhor provocarem a morte...

Os gritos dos bontarianos. Os rugidos dos brakmarianos. 

*****


"Lembro-me da minha cidade.... Tão escura. Tão sórdida..."

som metálico provocado pelos passos dos transeuntes chega ao seu quarto. O calor que exalam as rochas magmáticas também. Já passou da meia-noite e Dhaurys ainda não dormiu. Sua janela dá para Couraça. Provavelmente, o lugar mais vivo de Brakmar.

"Haaan! Gniiiiii! Pff..."

A pequena Sram força pela vigésima vez a fechadura da janela, mas de nada adianta. Seu pai a trancou cuidadosamente.

"RrrrrHAAAAAA!! Seu Shushu velho mal Shushutado!!"

Com raiva, Dhaurys chuta um baú e acaba espalhando diversos brinquedos por todo o quarto. Um boneco talhado em madeira escura de Arvraknídeo rola até ela. Dhaurys se agacha para pegá-lo. É possível distinguir os traços de Oto Mustam, o ditador que reina em Brakmar e o mestre de armas da milícia, a mesma em que o pai dela trabalha há muitos anos.  

"É muito injusto...", pensa a garotinha enquanto move o objeto na palma da mão.

Lá fora, o dia começa a romper. Dhaurys não pregou os olhos a noite toda. Ela não se lembra de já ter deixado João Pestana levá-la ao país dos pesadelos por muito tempo. Ela preferia ver esse, mais real, que acontecia nas suas janelas...

Algumas horas antes, como fazia todas as noites, ela insistia bastante para acompanhar o pai ao anoitecer.

"Papai, o que está acontecendo lá fora é bom ou ruim?

— As duas coisas, minha filha, as duas coisas...

— Eu quero ir com você. Eu estou pronta, agora.

— Você sabe o que eu penso, neném. Ainda está muito cedo. 

— Pare de me chamar assim! Eu não sou mais uma garotinha!"

O dozeano segurou o riso.

"É a mãe todinha... sussurrou com a voz triste, mas cheia de ternura. Se ainda estivesse aqui, ela estaria orgulhosa de você. Com certeza. Agora chega de cara feia e deixe-me contar a sua história favorita."

A proposta era imbatível, até para uma teimosa como Dhaurys. Na mesma hora, a garotinha ficou mais feliz. Ela se sentou no colo do pai, pronta para saborear cada detalhe da Grande Batalha. Como Djaul conseguiu inflamar seus homens para destruir o inimigo. A adrenalina que subia nas fileiras do exército à medida que ressoavam os cantos patrióticos brakmarianos, mas também naqueles que esperavam, no conforto aconchegante de seus lares, a vitória que honraria o povo.

E, então, o momento fatídico, quando a situação ficou séria de verdade. A irrupção das tropas de goblins saindo dos Montes de Sidimote até os postos avançados bontarianos. Os cavaleiros de Karne perseguindo os pouco sobreviventes da Ordem do Coração Valente. A cilada do exército de Chaferes. E não podemos esquecer, é claro...


Hyrkul, o guerreiro negro... 

Ôm'héga sentiu um calafrio por todo o seu corpo frágil. A imagem do colossal guerreiro negro Hyrkul empunhando a espada da qual escapava um lúgubre dragão de luz proporcionava a mesma sensação todas as vezes. Ela se enrolou no cobertor mais uma vez, ficando apenas a cabeça do lado de fora, e seguiu com a leitura.

O retrato de Menalt, em forma de herói, dava início a um novo capítulo. Por várias vezes, a pequena Xelor ouviu a avó exaltar a coragem daquele que não hesitou em se livrar da própria armadura para lutar melhor contra a infame criatura. O fogo branco e o fogo negro, reunidos na batalha. Infelizmente, o centauro não sobreviveu, não mais do que os cavaleiros da Ordem do Coração Valente que pereceram com os golpes de Hyrkul. Por sorte, os brakmarianos também não saíram vitoriosos. Pelo menos, não dessa vez...

As trevas dessa aurora funesta se espalhavam a ponto de os bontarianos pensarem que nunca mais veriam o dia nascer. Elas acabaram dando lugar a uma aurora com cinzas fumacentas e avermelhadas que ficou conhecida como Aurora Púrpura.

Desde esse dia, as duas maiores cidades do Mundo dos Doze ficaram alternando períodos de guerra e de paz, dando ao conflito, às vezes, formas inesperadas como aquela troca epistolar de linguagem rebuscada entre Amayiro e Oto Mustam.

*****

Ôm'héga fecha o livro e enxuga uma lágrima que escorre pelo rosto. Uma tristeza infinita toma conta dela. Pois, evidentemente, nada disso pertence ao passado. Ela volta a cabeça para a janela quando tem a sensação estranha de que, afinal, a noite de 12 de septange do ano de 26 nunca acabou de verdade. Há algum tempo, alguma coisa se apossou dos dozeanos a ponto de deixá-los completamente fanáticos. Os bontarianos mais comedidos parecem ter ficado loucos e defendem a cidade deles com uma agressividade na qual Ôm'héga não enxergava os valores da cidade. Até os esforços dos Huppermagos para acalmar a situação foram em vão...

De repente, a jovem garota franze o cenho. Um barulho chama a atenção dela, lá fora. Ela sai do cobertor e se aproxima da janela.

"Hã?"

Um Miaw Negro lambe a pata direita, uma pena de Corvoc presa em suas garras. O felino se espreguiça e salta em direção à saída de uma chaminé, quase caindo. Sua falta de jeito derruba algumas telhas que se quebram no chão fazendo um barulho terrível.

"Catita! Chega de baderna!" 



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