Eu estava quase jogando a toalha. O caso da pequena Eni não me fez ficar em paz com a raça dozeana. Após anos tentando erradicar o mal, comecei a tentar entendê-lo. Ficar do lado da lei... Era óbvio desde que eu era pequeno. É... Acabei percebendo que o muro que me separava "deles" era tão espesso quanto uma folha de Kaliptus. Então pensei em partir. Abandonar o navio, antes que me afundasse de vez. Antes de começar a ficar que nem eles... Mas tinham que me colocar nesse caso.
Rrr... Cal... Em que novelo você foi se meter agora? E o Raynê, o que ele está esperando para encontrá-la? Com seu andar manco e sua tremedeira, o vovô deve estar tomando um bom chá enquanto espera a vovó chegar em casa.
A rainha, como costumamos chamá-la, tinha planejado um retorno em grande estilo. Disco novo, estilo novo, espetáculo novo. Mais sensacional do que nunca, ao que tudo indica. Sinto muito, mas os fãs vão ter que esperar! A única coisa que a diva conseguiu fazer para que falassem dela foi desaparecer. Se estou preocupado? Um pouco... Não vou mentir. Mas a Cal já me fez passar por poucas e boas, então não sei se ela não está apenas aprontando mais uma das suas para ter todos os olhares voltados para ela...
Quando fui chamado naquela noite, eu tinha jurado que nunca mais botaria as patas no Ecaesars Palace. Não era para mim. Não era o meu mundo. A tigresa não me deixava esquecer... Eu estava sossegado, descendo o meu segundo Glutorrum. Era o que eu precisava para esquecer todas as atrocidades que acabam a sua cabeça quando você é da polícia. Mais um gole do bom. Daqueles que esquentam o esôfago e anestesiam o coração. Daqueles que fazem você flutuar. Coberto pelo smog da colina, olhos fechados, a brisa acariciando minha barba de três dias. Eu me sentia bem.
"BAM! BAM! BAM! Inspetor Greyjak! Abra!"
Três porradas na minha porta arruinaram o lamento do trompete de Bullaly, do fabuloso Mank Forgan. Logo na melhor parte. Babacas. Nunca gostei de receber visitas sem aviso, mas... era uma noite diferente.
Poucas vezes vi tanta gente histérica. A Cal conseguiu. Foi muito esperta sumindo do mapa por dez longos anos. Deixar saudades para suscitar o desejo. Sucesso garantido. Sei por experiência própria... Parece que nem tudo estava indo bem. A Cal deu um bolo nos fãs. Também sei como é isso...
Os membros do staff corriam por todo lado. Parecia um formigueiro preparando a chegada da rainha. Só que a rainha tinha desaparecido.
Colhi alguns indícios, mas nada conclusivo. O caso seria complicado. Dois dias após seu desaparecimento, decidi voltar ao Ecaesars Palace. Algo deve ter passado batido...
Chegando lá, a tensão era palpável. Um silêncio pesado. A perícia colhia impressões digitais aqui e acolá. Sem muita convicção. Fala sério... Impressões digitais de um possível culpado na maior sala de shows de Ecaflip City? Era como procurar agulha no palheiro. Vendo toda essa agitação, comecei a sentir o estresse subindo e sufocando minhas entranhas. Tudo isso começava a me deixar em ecaflipânico...
A área estava toda controlada, com um guarda em cada saída. Passaram-se 48 horas desde o desaparecimento da Cal. O prazo final, como costumamos dizer. É quando a esperança começa a morrer, misturada ao smog amarronzado e viscoso da cidade.
Após confirmar minha identidade uma dezena de vezes a agentes de segurança nada simpáticos, consegui chegar ao camarim da Cal. Postado diante da porta, um Molosso duma compostura desconcertante, reto como um poste, mascava uma goma e exibia seus caninos afiados como facas a cada movimento da mandíbula. Suas pupilas escuras davam medo. Seu físico também. Um Kilorf esculpido em pedra. 1 kametro e 90 para uns 100 quilopods, olhando assim. Enfim, a coisinha mais adorável.
Comecei a preparar o procedimento de sempre: a mão enfiada no bolso de dentro do casaco, a retirada ensaiada do distintivo e a famosa apresentação da minha pessoa, aquela que abre todas as portas, inclusive a do camarim de uma diva famosa.
"Eu não esqueci vocêêêês, oooh, nããão... Ah, desculpa, inspetor!"
Eu não tinha percebido os dois sopradores enfiados nas orelhas dele, essas criaturinhas cônicas que memorizam as letras das músicas e gritam todas elas dentro da sua cabeça, em grandes doses de decibéis.
"Saul Greyjak, inspetor do DPEC* responsável pelo inquérito. Tenho algumas perguntas para você, se me permite".
E se não me permite também.
"Ah, sim. Mas é claro, inspetor!"
Um detalhe chamou minha atenção. Como se estivessem esculpidos em pedra, três arranhões profundos marcavam seu pescoço, pouco abaixo da orelha.
"Profissão difícil", disse apontando para seu pescoço com um pequeno gesto feito com a cabeça.
Senti o desconforto no ar. O Kilorf tentou, desajeitadamente, esconder o ferimento subindo a gola da jaqueta.
"É, eu... Você sabe como é, inspetor! Ecaflip City... Por mais que chamem de cidade das luzes, não é todo mundo que é iluminado!"
Estranho... É preciso ter uma personalidade muito forte para atacar um armário de gelo como ele. Ou sentir que está correndo perigo... Meu coração estava acelerado. Decidi fazer a fera falar.
"Você encontrou uma pedra no meio do caminho?"
- Hum... Pode-se dizer que sim... balbuciou esfregando a nuca.
- Cuidado, sua mulher pode imaginar coisa errada... respondi com uma piscadela sem cumplicidade.
O sujeito começou a ficar vermelho como um pimentão e balbuciou algo incompreensível. Tinha alguma coisa errada. Tudo bem, ele não parecia muito esperto... Mas eu sentia que valia a pena insistir...
"Aliás... Nós não terminamos as apresentações. Quem é você mesmo?
- Fran'cyss, informante do esquema de proteção pessoal. Mas me chamam de 85.
- Hã? Tá... Por quê?
- Meu QI. Sabe? O quociente, hum... O negócio lá, que tem a ver com a mente.
- Ah. Entendi. Então, 85, aconteceu alguma coisa de anteontem para hoje? Conte o que você sabe.
- Então... É que... A Cal tinha que fazer um show, sabe?
- Hã? Sério? Não brinca!
- É verdade, eu juro! Para o lançamento do novo disco dela. "Eu não esqueci vocês", o nome dele. Eu até consegui um autógrafo, olha!"
O sarcasmo não era o forte dele...
"E aí: show, pessoas ensandecidas, cortina subindo e PAF! Nem sinal da Cal, foi isso?
- Nem sinal da Cal. Sumiu!
- E aí? O que você fez?
- Ah, hum, então... Eu fiquei de vigia para que ninguém entrasse nos bastidores. Veja bem. O povo enlouqueceu. Pegamos um monte de gente tentando arrombar a porta do camarim dela. Dizendo que a Cal estava nervosa e precisava do apoio dos fãs para entrar em cena. Haha! A Cal, nervosa. Dá pra imaginar?
- Ah, isso... Você não faz ideia...
O Kilorf levantou mais uma vez a gola da jaqueta, desviando o olhar.
"Você não viu nada de diferente? Um comportamento estranho, alguém da plateia que poderia ter chamado sua atenção? Qualquer coisa, mesmo que pareça sem importância. Tudo é possível agora... Tudo mesmo, insisti olhando para ele.
- Nada, a gente não, hã, bom, eu não vi...
- A gente? Você estava com alguém?
- Hã, hum... Você quer dizer alguém além dos meus colegas da segurança? Ah, não, não! Com quem mais eu estaria? Haha! Hum..."
Curioso...
"Ufa... Tá calor aqui, né? Desta vez, 85 puxou a gola da camisa, exibindo seu pescoço de Tauro.
- E a Cal? Como ela estava antes do show?
A Cal? Não dá! Não dá pra ter ideia! Ela não aceita ver ninguém 3 horas antes do show.
Típico... Como pude esquecer? Os caprichos das divas, sabe? Todas elas têm suas loucuras. Elas competem para ver quem pede a coisa mais absurda. A da Cal era o açúcar. Em todas as suas formas. Um banho com 29 graus de temperatura, nem mais nem menos, com uma espécie de xarope de Gelatina Real. Doce de fruta, "para relaxar as cordas vocais", como ela dizia. Palhaçada. Tudo acompanhado de uma generosa taça de suco de Cogu-Cogu com mel. Só para relaxar. Ela dizia que estava "adocicando o bico". Quem tivesse a audácia de interromper o ritual da senhora Gosta teria que enfrentar sua fúria. Eu que não gostaria de estar do lugar do infeliz...
"Onde você estava antes do sumiço da Cal?"
Minha pergunta mexeu com o Molosso. Parecia um garoto que tinha acabado de ser pego com a boca na botija. Quanto mais o tempo passava, mais eu achava que a Cal estava na barriga do próprio Kilorf... Eu estava todo arrepiado. Uma vez mais, 85 subiu a gola maquinalmente para esconder seu ferimento e tentou dar uma explicação sem conseguir olhar nos meus olhos. Nem um pouco convincente.
"Antes do sumiço? Ahn... Calma, eu vou lembrar... Eu... Eu..."
De repente, atrás de mim, os flashs dos jornalistas destacados para o local (alguns já estavam na região há dois dias) crepitavam como fogos de artifício. Salvo pelo gongo, 85 olhou por cima do meu ombro de boca aberta.
Esse perfume... Já senti esse perfume dezenas de vezes nos meus lençóis, depois de uma daquelas noites de amor em que ela sempre terminava indo atrás do Raynê, preferindo a razão à paixão.
"Cal...?"
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